De onde vem a seca?

O documentário “Rios da Vida: Amazonas” poderia começar em qualquer ponto do mapa. Mas para quem vive em Santarém, onde Tapajós e Amazonas se abraçam, faz sentido começar por aqui (que fica no fim do documentário). Porque é aqui que a floresta vira corredor. É aqui que os grãos descem e os modos de vida são empurrados para fora.

Na confluência entre dois dos maiores rios do mundo, a cidade virou ponto estratégico para exportação. Mas nem tudo que desce o rio é visível. A soja, hoje, é o principal motor do desmatamento na região. Desde os anos 2000, comunidades inteiras perderam suas terras, pressionadas por grileiros e magnatas do agronegócio. Muitas vezes, sem documentos, as famílias foram forçadas a vender barato ou simplesmente desaparecer. A floresta deu lugar a campos de monocultura. Os modos de vida ribeirinhos foram empurrados para a periferia urbana. E ali, nos bairros pobres de Santarém, descobriram que a cidade também tem seus vazios.

O documentário dá nome aos rostos. Maria dos Santos, presidente do sindicato dos trabalhadores, vivia sob escolta armada por denunciar grilagens e ameaças. A construção ilegal do porto da Cargill, sobre sítios arqueológicos, se tornou símbolo da expropriação. Tudo isso aconteceu diante de uma ausência gritante de política pública que protegesse o território e sua história.

Mais acima no rio, o caso de Balbina nos anos 1980 revela outro tipo de tragédia. A construção da hidrelétrica, feita com pressa e sem supressão da floresta, inundou mais de dois mil quilômetros quadrados. A água ficou podre. Os animais não conseguiram escapar. Os macacos foram os que mais morreram. As comunidades, deslocadas para Nova Balbina, perderam suas terras, suas redes, suas formas de viver. O que restou foi desalento, desemprego e alcoolismo. Um projeto vendido como modernidade deixou um rastro de perda. E uma pergunta que ainda ecoa: como se pode errar tanto com um rio?

Mais acima, no Catalão, o rio dá sinais de outro colapso. Em 2005, a maior seca já registrada deixou a população sem água, sem peixe, sem mobilidade. Casas flutuantes encalharam na lama. Crianças e velhos esperavam chuva com canecas nas mãos. A floresta, sem água, virou combustível. O que parecia um evento único se repetiu em 2007. E em 2023. O ciclo das águas está rompido. E a cada minuto, seis campos de futebol de floresta são derrubados. A Amazônia já não é mais o sistema estável que se dizia ser.

Mas nem tudo é ausência. Na Reserva do Piranha, ribeirinhos colaboram com cientistas no estudo das relações entre peixes, frutos e árvores. A floresta alimenta os rios, os peixes alimentam os povos, os povos protegem a floresta. Há simbiose. Há inteligência ecológica. E há resistência.

O documentário encerra subindo até Iquitos. A maior cidade do mundo sem acesso rodoviário, cercada por rios e floresta. Mas também por abandono. Falta saneamento, falta saúde, faltam alternativas. A população vive com os pés na água e sem água potável. Enfrenta doenças, enchentes, extremos. E assiste de perto ao avanço de um modelo que não lhe pertence.

Ao longo de todo o rio, o documentário traça uma linha que não é só geográfica. É ética. É sobre a tensão entre o livre curso das águas e o controle violento dos territórios. Entre o conhecimento tradicional e a imposição do lucro. Entre um futuro possível e a repetição das velhas receitas de destruição.

Gerenciar a Bacia do Rio Amazonas exige mais do que mapas. Exige escuta. Exige frear a pressa. Exige reconhecer que o rio não pode ser domado. E que, se for destruído, não teremos outra chance.

A pergunta não é quanto tempo o rio seguirá livre. A pergunta é: quanto tempo mais vamos fingir que não sabemos o que estamos perdendo?

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